Viés de retrospectiva: Os 7 a 1 da Alemanha e a análise de acidentes…
Nesse artigo refletiremos sobre o viés de retrospectiva: Os 7 a 1 da Alemanha e a análise de acidentes. É uma reflexão desapaixonada sobre os resultados das nossas análises de acidente de trabalho.
O QUE SIGNIFICA RETROSPECTIVA?
Retrospectiva significa ser capaz de olhar para trás, de fora, em uma sequência de eventos que levaram a um resultado que você já conhece.
É a tendência comum para as pessoas perceberem os eventos passados como tendo sido mais previsíveis do que realmente eram. Após a ocorrência de um evento é comum as pessoas acreditarem elas teriam previsto, que sabem as causas, ou talvez até soubessem com um alto grau de certeza qual teria sido o resultado do evento antes que o evento ocorresse.
O VIÉS DE RETROSPECTIVA É VANTAJOSO?
A retrospectiva oferece acesso quase ilimitado à situação que cercava as pessoas na época (onde estavam x onde pensavam estar; em que estado estava o sistema x o que pensavam que estava).
A retrospectiva permite que você identifique o que as pessoas perderam e não deveriam ter perdido; o que eles não fizeram, mas deveriam ter feito.
O PONTO NEGATIVO DA RETROSPECTIVA NA ANÁLISE DE ACIDENTES
Olhar a situação em retrospectiva faz com que você simplifique demais a história. Tendemos a ignorar as variáveis e focar somente no que aconteceu! Mas você já sabe o final da história! E isso te dá uma “vantagem injusta” em comparação a forma como as pessoas entenderam os eventos no momento em que estavam acontecendo, lidando com variáveis, tendo que tomar decisões rápidas, tendo acesso a informações limitadas, incertezas…
Você acredita que uma sequência de eventos inevitavelmente levou a um resultado. Você subestima a incerteza que as pessoas enfrentaram.
A seleção brasileira, por exemplo, perdeu de 7 a 1 para a Alemanha. E muita gente até pensa que aquela foi a pior seleção brasileira de todos os tempos, e que o técnico errou feio, que ele perdeu o time e sabe pouco de futebol. Mas quando olhamos para o técnico dela vemos o Felipão que já tinha ganho uma Copa do Mundo (2002) no comando da seleção brasileira, tinha sito multicampeão com o Palmeiras, Grêmio e outros times, ou seja, não era um novato ou inconsequente.
Os jogadores brasileiros daquela seleção, daquela geração que era o que tinha (que sim, aparentemente estavam abaixo da geração anterior de Ronaldo, Ronaldinho, Rivaldo e companhia) naquela época jogavam em grandes clubes, aqueles que ainda são jovens até o momento ainda jogam em grandes clubes.
A derrota da equipe brasileira acabou com a sequência invicta de 62 jogos em casa em competições oficiais, sendo que a última derrota tinha sido o 3–1 para o Peru na Copa América de 1975. A partida também havia sido disputada no Estádio Mineirão, em Belo Horizonte. A última vez que o Brasil perdeu uma semifinal da Copa do Mundo tinha sido em 1938.
Repare que quando paramos para observar os elementos do jogo fica difícil dizer que simplesmente o técnico foi burro, ou que o time era formado por jogadores de baixo nível. Que houve erros, talvez tenha havido mesmo, mas não é tão simples como parece.
Talvez assim como nos acidentes de trabalho, as derrotas em esportes principalmente de grupos, são por vezes “multifatoriais”.
O VIÉS DE RETROSPECTIVA NA NOSSA VIDA PESSOAL
É comum que em caso de grandes erros pessoais também tendamos a simplificar as coisas, e quando pedimos opinião de um colega sobre algum erro pessoal que tenhamos cometido, o julgamento pode doer tanto quanto doeria um soco no estômago.
A separação em um casamento é sempre algo marcante. Ela provoca muita dor e profundas reflexões. Me lembro que quando estava separado da minha esposa, numa conversa com uma colega sobre o tema eu disse:
– Espero que eu tenha tomado a melhor decisão.
E ela que também estava separada me disse:
– Você nunca saberá! A gente apenas continua caminhando, mas nunca temos certeza se foi a decisão certa.
Essa fala da colega provavelmente eu jamais esquecerei. É totalmente diferente de foi culpa sua x foi culpa dela. É uma fala profunda, e me levou a não querer simplificar as coisas como fazemos às vezes na segurança do trabalho.
Olhando para trás numa análise de acidente é difícil sair da ideia de certo x errado, comportamento seguro x ato inseguro.
O VIÉS DE RETROSPECTIVA E A SIMPLIFICAÇÃO COISAS COMPLEXAS
Olhando para trás, em retrospectiva você vê uma sequência de eventos como linear, levando de forma agradável e ininterrupta ao resultado que você já conhece. Se você tivesse visto a mesma situação por dentro, teria reconhecido vários caminhos possíveis e muitos ziguezagues neles.
Simplificamos demais a causalidade quando raciocinamos de trás para frente. Quando você pode rastrear uma sequência de eventos para trás (o que é o oposto de como as pessoas experimentaram na época), você facilmente acopla “efeitos” a “causas” anteriores (e apenas essas causas) sem perceber que os acoplamentos causais são muito mais difíceis para resolver quando no meio das coisas.
O presidente da investigação sobre a ferrovia Clapham Junction acidente na Grã-Bretanha percebeu isso e tornou explícito. Ele avisou:
“Quase não há ação ou decisão humana que não possa parecer falha e menos sensata à luz enganosa da retrospectiva. É essencial que o crítico se mantenha constantemente ciente desse fato.”
Em 31 de maio de 2009 aconteceu um acidente aéreo muito grave, ele levou a vida de 255 pessoas. O voo Rio – Paris F447 teve inúmeros componentes que colaboraram para o fim trágico, mas como sempre é de se esperar, as pessoas até hoje culpam unicamente os pilotos pela tragédia.
Frases nos fóruns que falam sobre o acidente sempre descrevem como “foi 100% culpa dos pilotos”, ou “até um piloto novato saberia o que fazer para evitar o acidente”. Essas frases são infelizmente um retrato do viés de retrospectiva agindo nas cabeças das pessoas.
O pior é que o viés de retrospectiva na análise de acidente nos leva a simplificar tanto o evento, que como vimos, costumamos simplesmente rotular e julgar as pessoas. E nesse cenário tendemos a utilizar palavras que não ajudam em nada, por exemplo, erro humano, falha humana, ato inseguro, falta de atenção, falta de percepção de risco, etc.
O resultado de qualquer análise de acidente deve levar ao aprendizado. Se a análise não leva ao aprendizado e consequente melhoria, não serve de nada!
COMO FUGIR DO VIÉS DE RETROSPECTIVA NA ANÁLISE DE ACIDENTES DE TRABALHO?
Já vi colegas que utilizam ferramentas para melhorar suas investigações e análises de acidentes, o que é muito válido. Mas o fato é que utilizar Ishikawa, Árvore de Falhas, de Causa, 5 Porquês ou outro, não necessariamente te conduz ao resultado de aprendizado e melhoria.
Muitas vezes mesmo com a utilização de ferramentas o resultado apresentado não conduz ao aprendizado, mas tão somente serve para apontar o dedo para alguém.
Para fugir do viés de retrospectiva ou do viés do julgamento aqui estão algumas coisas que você pode fazer:
- Calce os sapatos do acidentado: me refiro a buscar entender o mundo sobre o ponto de vista dele (o trabalhador).
Se você quer entender por que as pessoas fizeram o que fizeram, é preciso reconstruir a situação à medida que se desenrolava ao redor deles. O que o trabalhador buscava executar? Como ele estava mentalmente e de saúde no dia do acidente? Quais pressões ele poderia estar experimentando para executar a atividade daquela forma? Havia material, ferramental, tempo disponível e tudo mais que ele precisaria para fazer seguro?
- Pergunte mais, afirme menos: uma das ferramentas mais poderosas numa análise de acidentes são as perguntas. Utilize-as sem moderação. mostre genuíno interesse em fatos, dados e em entender o contexto da atividade nos dias próximos ao da ocorrência.
- O resultado da análise não deve apontar para pessoas, mas para processos: como diz o Todd Conklin “quando acontece o acidente você pode culpar e punir ou aprender e melhorar. Não é possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo”. Planos de ação que levam em conta apenas treinamentos, orientações, DDSs e outros devem ser adotados com precaução. Se o plano foca apenas em pessoas talvez a análise toda tenha apontado para o lado errado…
- Não tente simplificar o complexo: não há como sua análise ser simples se o processo produtivo for complexo. Aceite os fatos! Não é preciso inventar a roda.
- Por mais que se esforce nem sempre “a verdade” será visível: a análise de acidente é um evento por vezes bem intencionado. Mas mesmo assim, devido a falta de elementos materiais a serem analisados (afinal, às vezes nem vídeo do acidente é possível conseguir), pode sobrar suposições e faltar dados, principalmente do processo. Sem dados e fatos, o que sobram são suposições também sobre a causa do acidente.
- Esqueça a causa única e se apegue nas múltiplas causas: os acidentes de trabalho são eventos multifatoriais. Se apegar em causa única simplifica as coisas para o analista do acidente, mas normalmente detona a possibilidade do aprendizado e melhoria dos processos.
SUGESTÕES DE LEITURA QUE TE AJUDARÃO A FUGIR DO VIÉS DE RETROSPECTIVA
Livros:
- O acidente e a organização: o livro apresenta uma abordagem ampliada a respeito das causas dos acidentes de trabalho. Nos levando a fugir das simplificações, e refletir sobre as causas de vários de acidentes acontecidos ao longo da história.
- The Field Guide to Understanding ‘Human Error’: ao se deparar com um problema de ‘erro humano’, você pode ficar tentado a perguntar “Por que essas pessoas não tomaram mais cuidado?”, ou “Como pode a pessoa correr esse tipo de risco?”.
Você pode pensar que pode resolver seus problemas de segurança dizendo ao seu pessoal para ter mais cuidado, repreendendo os malfeitores, emitindo uma nova regra ou procedimento e exigindo conformidade. Mas será que isso resolve? O autor do livro, o Sidney Dekker prova com dados e fatos que isso não funciona.
Ps: o segundo livro existe apenas em ingles 😟
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Seguindo as dicas desse artigo a chance de fugir do viés de retrospectiva na análise de acidentes aumenta muito! Análises de acidentes justa certamente é um dos fatores que ajudam a amadurecer a cultura de segurança. E então, bora anotar e colocar em prática?
E se precisar de ajuda, entre em contato 😉
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